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A ditadura de 1964 e a relativa democracia do direito fiscal (tributário) de então

Quando, no início da década de setenta, acadêmico de direito da UFRGS, comecei a estudar o que naqueles tempos difíceis era mais conhecido como Direito Fiscal, vivia-se no auge da ditadura militar e dos Pareceres Normativos da Receita Federal, que ainda não era do Brasil.

03 Mai 2011 0 comment
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  Walmir Luiz Becker
No escritório de um economista, onde se exercia esse Direito Fiscal, e por onde principiei minha carreira profissional, a doutrina estudada era a de Rubens Gomes de Souza, Gilberto de Ulhôa Canto, Aliomar Baleeiro e a de José Luiz Bulhões Pedreira, este último autor de uma obra voltada exclusivamente para o imposto de renda, que é até hoje a melhor e mais completa desse gênero produzida neste País (Imposto de Renda, Apec, RJ). Ainda hoje, não há como deixar de lembrá-los.

A legislação tributária vinha publicada, com alguns poucos textos doutrinários, em revistas como a Resenha Tributária, Cefir, Anaff, Revista do Imposto Fiscal e a Revista Fiscal do Tito Rezende. Mas, por necessidades práticas, as publicações mais aguardadas e lidas por iniciantes como eu eram, mesmo, as dos Pareceres Normativos expedidos pela Coordenação do Sistema de Tributação da Secretaria da Receita Federal.

Embora concebidos e elaborados nos gabinetes da Coordenação do Sistema de Tributação da Receita Federal, os Pareceres Normativos CST interpretavam com boa forma e, na maioria das vezes, bom conteúdo e tirocínio, a legislação tributária da época, cuja fonte principal eram os decretos-leis do Poder Executivo castrense. Através deles, Pareceres Normativos, ficava-se conhecendo o entendimento da administração tributária sobre as mais diversas questões da área fiscal, o qual, uma vez externado, tinha, na prática, força de lei, por conta do disposto no art. 100, inciso I, do Código Tributário Nacional.

Foi-se a ditadura militar, veio a Constiuição Federal de 1988, e, com ela, um Congresso Nacional livre, a quem foi confiada a nobre missão de editar todas as leis que regem, em âmbito nacional, os destinos do País e de seus cidadãos contribuintes, inclusive as leis de natureza tributária. Para a edição destas últimas, esse Congresso passou a contar com um novo e explicitativo Sistema Tributário Constitucional. Tão explicitativo que, a rigor, muitas vezes, seria até desnecessário legislar em matéria tributária; bastaria aplicar a Constituição.

Mas o Congresso legisla, sim, sobre temas tributários, e nem poderia ser diferente. Fá-lo, no entanto, de modo totalmente omisso e submisso. De fato, atualmente, as leis tributárias do Brasil, na esmagadora maioria das vezes, têm sua origem em Medidas Provisórias do Poder Executivo Democrático. Tem sido assim desde 1988. Os decretos-leis do Poder Executivo Ditatorial foram substituídos pelas medidas provisórias do Poder Executivo Federal Democrático.

De sorte que (ou azar) o direito tributário, assim como no tempo da ditadura militar, não tem sido construído, no Brasil, pelos representantes que o povo colocou no Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas Estaduais e nas Câmaras Municipais, para cumprir, dentre outras, essa importantíssima missão (competência) constitucional. Mais do que outrora, o direito tributário brasileiro continua a ter como fonte de inspiração atos e idéias de uma administração pública interessada em aumentar, cada vez mais, a arrecadação tributária da União, Estados, Distrito Federal, e Municípios.

A diferença entre os tempos atuais, democráticos, e os de antigamente, ditatoriais, está em que a Constituição Federal de 1967/1969 parecia ser mais respeitada, no que ela, muito menos explicitativa e permissiva do que a atual, em termos de carga tributária, permitia e proibia quando se tratava de instituição ou aumento de tributos. No imposto de renda, tributava-se a renda, sem o expediente ardiloso das inconstitucionais tributações exclusivas ou em separado (aceitas pelo STJ - REsp. 905.170), que desconsideram a existência ou não de acréscimo patrimonial no período de apuração do imposto. Nas contribuições sociais (v.g., PIS e Finsocial), tributava-se a receita operacional, não mais do que isto.

Transparecia tal respeito à Constituição no próprio Poder Executivo emissor tanto dos decretos-leis quantos dos pareceres normativos. Daí não terem sido muitas as ofensas constitucionais levadas ao Supremo Tribunal Federal pelos contribuintes daquela época. Além disso, o Poder Judiciário, talvez até em função dos tempos duros então vividos pelos cidadãos e contribuintes brasileiros, parecia mais disposto a observar a máxima de "in dubio pro contribuinte", e não a que ele vem observando com seu ativismo judicial de agora, que é a de "in dubio pro fisco". É daquele tempo o voto magistral do Ministro Gallotti, proferido no RE 71.758, em que foi afirmado que ruiria todo o sistema constitucional tributário se se pudesse afirmar que é compra o que não é compra, ou que é renda o que não é renda.

Já, atualmente, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.588, em que se julga a inconstitucionalidade da incidência do imposto de renda sobre resultados de coligadas ou controladas de empresas brasileiras no exterior, ainda não disponibilizados na forma de lucros para suas coligadas ou controladoras no Brasil, a Ministra Relatora, Ellen Gracie, decidiu que "Não houve ofensa ao art. 153, III, da CF; b) o conceito de renda na CF é polissêmico e não ontológico. Para efeitos tributários, o conceito de renda é o legal. No CTN, corresponde à disponibilidade econômica ou jurídica do produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, o que, ao fim, representa o acréscimo de valor patrimonial; "

Não por acaso o dispositivo legal que a Ministra considerou não ofensivo ao conceito constitucional de renda é, justamente, o de uma Medida Provisória, a saber, o do art. 74 e parágrafo único da MP nº 2.158-34/2001. Esse voto "pro fisco" ganhou a adesão dos Ministros Nelson Jobim e Eros Grau, sendo esta a situação desse julgamento até o pedido de vista do Ministro Carlos Brito, e votos discordantes dos Ministros Marco Aurélio (sempre ele) e Ricardo Lewandoski.

E quando uma decisão do Supremo Tribunal sobre determinada questão tributária vem a favorecer o contribuinte, altera-se a Constituição Federal. É o que tem acontecido com frequência depois de 1988. Os exemplos disso são inúmeros.

Na redação original do art. 195 da CF/88, as contribuições sociais devidas pelos empregadores incidiam sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro. Bastou o STF decidir (RE 166.772) pela não incidência da contribuição previdenciária sobre a remuneração paga pelas empresas a seus trabalhadores autônomos ou sobre o "pro labore" de seus administradores, não compreendidos na expressão "folha de salários", para que, por Emenda Constitucional, a de nº 20/98, se tratasse de alterar o artigo 195 da CF/88, por força do que passou a ser constitucionalmente permitida a cobrança de tal contribuição, não somente sobre a folha de salários, mas sobre esta e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que preste serviço à empresa, mesmo sem vínculo empregatício.

E como, no conceito constitucional de faturamento, não cabiam todas as receitas que a administração tributária queria ver submetidas às contribuições sociais instituídas pelo legislador constituinte de 1988, a mesma EC 20/98 incluiu, junto e ao lado do vocábulo faturamento, o vocábulo receita (art. 195, I, da CF/88). É que, anteriormente, no julgamento de alterações que a Lei nº 9.718/98 introduziu na legislação da COFINS (LC 70/91), o STF havia chegado à conclusão óbvia, qual seja, a de que a expressão faturamento não era compreensiva de toda e qualquer receita, se não que tão-só daquelas provenientes da atividade operacional da empresa.

É claro que ditas modificações constitucionais não foram obra do acaso, nem nasceram de geração espontânea. Resultaram de instâncias, insistências e iniciativas principalmente dos Poderes Executivos Federal e Estaduais. Por tal arte, o faturamento perdeu o significado histórico, técnico e jurídico que tinha, e que sempre teve, desde a era de Rubens Gomes de Souza, Aliomar Baleeiro, Gilberto de Ulhôa Canto e Bulhões Pedreira, para ganhar um sentido extremamente vago e incerto, bem ao gosto dos próprios autores de fato da alteração constitucional que eles urdiram e engendraram no aconchego e recôndito dos gabinetes do Ministério da Fazenda, ou das Secretarias das Fazendas Estaduais.

A partir disso, os amplíssimos e desmedidos conceitos de receita, para efeitos de incidência das contribuições PIS e COFINS, puderam e podem ser vistos, a toda hora, nas Soluções de Consulta das diversas Regiões Fiscais da Receita Federal do Brasil, cujas ementas enchem as páginas do Diário Oficial da União. Diante do que muitas vezes se lê nessas Soluções de Consultas, concebidas e redigidas por diligentes funcionários fazendários de uma administração pública democrática, não há como não ter saudades dos antigos Pareceres Normativos CST.

Chegam a ser tragicômicas, por exemplo, as Soluções de Consulta que, reiteradamente, vêm sustentando o entendimento fiscal de que a incidência do ISSQN, em determinada operação (prestação de serviço) não afasta a (incidência) do IPI. Quer dizer: um único e mesmo fato pode gerar dois tributos para cuja instituição e cobrança há competências exclusivas na Constituição Federal, dos Municípios (art. 156), e da União Federal (art. 153), as quais, como se sabe, por serem exclusivas, são excludentes uma da outra.

Por outro lado, o problema da não incidência do ICMS sobre a importação de mercadoria por pessoa física também foi resolvido, agora já na esfera dos Executivos Estaduais. Por ingerência destes é que o constituinte derivado, contrariando firme orientação jurisprudencial do Supremo quanto à inconstitucionalidade da exigência de ICMS na importação de mercadorias por pessoas físicas (não comerciantes), aprovou a EC nº 33/2001, com o que, desde então, ficou autorizada a cobrança desse imposto sobre toda e qualquer importação de mercadorias do exterior, ainda que realizada por pessoa física e sem intuíto comercial.

Estes são apenas alguns exemplos clássicos de alterações da ordem constitucional, feitas com o claro objetivo de aumentar a arrecadação tributária, principalmente, dos Poderes Executivos Federal e Estadual. Há muitos outros casos dessa notável exacerbação tributária, mormente no plano infaconstitucional, bastando lembrar o da instituição do PIS e da COFINS não cumulativos, no que bem cedo viria a se revelar um dos maiores engodos de uma tão esperada reformulação de regime de arrecadação de tributos.

Contudo, não é a finalidade deste artigo ir tão longe. De resto, o que aqui foi dito é sabido por todos os contribuintes, especialmente pelos contribuintes profissionais do Direito Tributário, inclusive pelos fiscais de todas as administrações tributárias e dos procuradores fazendários. Também estes, como todos os mortais, vêm sendo submetidos, há anos, à tributação de boa parcela de seu patrimônio, em virtude da não correção da tabela progressiva do imposto de renda, que, aliás, pouco tem de progressiva.

Ainda quanto a isto (não correção da tabela do IR), nada se tem a fazer. O STF nega-se a mandar corrigir essa tabela do imposto de renda, a pretexto de que não pode funcionar como legislador positivo, ou, pior ainda, sob o argumento de que o conceito de renda é polissêmico (Ministra Ellen Gracie), isto é, pode conter várias significados ou sentidos, extraídos, todos, da legislação ordinária.

Diante de tais circunstâncias, o que resolvi fazer foram estes comentários, ao cabo dos quais procurei transmitir aos que me lerem uma idéia antiga que tenho, que é a de que, por mais estranho e contraditório que possa parecer, antigamente, nos tempos sombrios da ditadura militar, se legislava melhor sobre Direito Tributário, cujas normas também eram melhor aplicadas pelo Poder Judiciário de então. Não vai nisto saudosimo algum, até porque, por suas convicções, este comentarista jamais poderia padecer desse mal político.

Fonte: Walmir Luiz Becker

Advogado em Porto Alegre. Membro do Instituto de Estudos Tributários - IET e Membro do Conselho Editorial da Revista de Estudos Tributários – RET


COMENTÁRIO DE OMAR AUGUSTO LEITE MELO: interessante que o Dr. Walmir, corretamente, distribuiu suas “críticas” aos Três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Realmente, esses Poderes se contradizem e se digladiam entre si. Sobra, com certeza, para o contribuinte e todos os operadores do Direito Tributário (contadores, advogados, fiscais, procuradores). Curioso notar, nas palavras do autor, que, “na prática”, aqueles atos normativos expedidos pela própria Administração Tributária Federal (“normas complementares” do art. 100, III, CTN) traziam uma garantia maior do que a Constituição de 1988 (a Constituição Cidadão, o “Estatuto do Contribuinte”, como filosoficamente prefere Roque Antonio Carrazza). Outro assunto muito bem colocado pelo autor: a legislação tributária é praticamente editada pelo Executivo. No âmbito municipal, é bastante comum a vedação de projeto de lei tributária por parte do vereador, numa flagrante inconstitucionalidade, conforme já declarado pelo STF (ver http://www.tributomunicipal.com.br/site/index.php/blogartigosejurisprudencias/blogartigosoutrostemas/314-pode-um-vereador-apresentar-projeto-de-lei-em-materia-tributaria ). Enfim, vale a pena conferir esse artigo! E refletir sobre o seu conteúdo.

Última modificação em Quarta, 15 Março 2017 03:23

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